Hauser: violão lendário!

Miguel De Laet • December 4, 2023

O peso da tradição, associado à busca de novos métodos de fabricação, é a essência da oficina alemã Hermann Hauser.

Para inúmeros amantes do violão, o nome Hauser dispensa apresentação. Está certo, é muito difícil nunca ter ouvido falar em Hauser no universo violonístico, mas, para aqueles menos familiarizados com a fabricação de instrumentos musicais, o fato de dizer que se trata do violão utilizado por Segóvia é suficiente para demonstrar que é um violão muito especial. Caso você nunca tenha ouvido falar no mais criterioso violonista que já existiu - pois é, consegue ganhar fácil de João Gilberto nesse quesito -, o argumento de que se trata de uma família de artesãos que constroem violões desde o século XIX e são referência para fabricantes do mundo inteiro deve bastar. Hermann Hauser III e sua filha, Kathrin, concederam em 2010 à revista Violão PRO uma entrevista que tive o privilégio de realizar e que compartilharei neste espaço.


De Laet: Desde o século XIX sua família vem construindo violões. A música sempre esteve presente no lar dos Hauser?


Hermann Hauser III: A tradição começou em 1875 com Josef Hauser. Ele era também um excelente músico. Desde este tempo a música esteve presente na família. Josef Hauser compôs mais de 320 peças para cítara. Escreveu peças teatrais e lançou uma revista de música. Ele produzia tudo isso junto com a criação de instrumentos. A cítara e os violões eram as suas atividades favoritas.


Qual é o valor do peso da tradição no mercado de instrumentos musicais?


A tradição é um importante passo na manufatura em nosso pequeno atelier. A história da fabricação de violões nos mostrou toda a tecnologia desde o começo até agora, e isso é importante para o futuro.


O que o motivou a seguir os passos de seus familiares?


Quando eu era um menino, foi uma experiência impressionante ouvir no atelier de meu pai o som de grandes violonistas como Andrés Segovia e Julian Bream. Ver uma árvore na floresta e depois uma grande tora de madeira sendo cortada em pequenas partes para construir um instrumento que é, após finalizado, tocado como uma obra de arte nas mãos de grandes músicos.

Vi o primeiro concerto de Andrés Segovia em Munique na Herkules Saal, a maior sala de concertos da cidade, e na semana seguinte, Segovia, meu pai e minha mãe tiveram um encontro no hotel, lá em Munique. Nós todos caminhamos pela cidade com Andrés Segovia. Eu tinha 9 anos. Ele conversava comigo e minha mãe traduzia o que ele estava dizendo. Segovia me deu 100 marcos alemães e isso era muito dinheiro. Ele me perguntou: o que vai fazer com este dinheiro? Você quer comprar alguns brinquedos ou doces? Eu respondi: irei comprar ferramentas para fazer algum dia violões como meu pai! Segovia ficou muito satisfeito. Então segui os passos deles e a tradição continuou.


Fala sobre a sua relação que Segovia tinha com a família Hauser.


A amizade com Segovia começou com meu avô, em 1924, e continuou com as gerações seguintes. Hauser I e Segovia estavam muito próximos para criar um novo tipo de construção que resultaria em um violão com uma sonoridade diferente dos outros. Miguel Llobet e Hauser I conversaram pela primeira vez em 1913 sobre o mesmo projeto. No final, os dois mestres deram um grande concerto de violão em 1929. Era o começo de uma nova era no mundo da fabricação deste instrumento.


Segovia era muito criterioso quanto à sonoridade. Ele ajudou de alguma forma no desenvolvimento e evolução dos violões Hauser?


Hermann Hauser I e II tiveram muitas discussões com ele sobre a sonoridade dos violões, e as ideias para trabalhar o som típico de Segovia não pararam por aí.


Segovia se tornou uma lenda do violão por ajudar a popularizar o violão de concerto ao redor do mundo. Hauser I criou instrumentos incomparáveis, que chamaram a atenção de instrumentistas como Segovia, Llobet e Bream, influenciando luthiers do século XX. Hauser II e III são também grandes influências para luthiers ao redor do mundo. É muito difícil ser um Hauser quando você começa a construir seus  primeiros instrumentos?


É muito difícil seguir os passos de famosos luthiers como Hermann Hauser I e II. Por outro lado, é algo que ajuda você a não perder a qualidade. Até agora, minha filha Kathrin e eu estamos trabalhando no mesmo caminho, tecnologia e filosofia como Hauser I e II o tinham feito no passado. A concepção que foi trabalhada a partir de Hauser I é hoje padrão em nossa oficina e o sistema está funcionando perfeitamente também no calendário, como um relógio. Desde aquele tempo, cada violão da oficina Hauser não é apenas um bom instrumento artesanal, é uma obra de arte.


É possível definir um perfil de violonista que quer comprar um Hauser?


Estamos fazendo muitos modelos diferentes, designs e características sonoras que agradam tipos de músicos diferentes. Aqui eles podem encontrar a sua própria "especificação". Isso só funciona porque temos longo tempo de experiência alicerçada na tradição. Mas o melhor é o músico interessado em adquirir um violão ter um contato muito próximo com o luthier responsável pela sua construção. Também é necessário encontrar as mesmas palavras para o mesmo significado em cada caso. Tocabilidade e design são muito fáceis de conseguir, mas o som é como produzir um bom vinho.


São 17 instrumentos fabricados por ano. O violinista que quer encomendar um Hauser hoje precisa esperar quanto tempo para receber seu instrumento?


No momento temos um tempo de entrega de três a cinco anos, mais ou menos.


Os violões Hauser são reconhecidos por terem um bom equilíbrio sonoro, bastante volume e projeção. Como você desenvolveu os instrumentos com essas qualidades?


Temos uma boa coleção de muitos violões de nossa tradição. Aqui temos a oportunidade de testar diferentes anos e modelos de violões Hauser. Então, se o cliente disser que gosta de um instrumento antigo, podemos trabalhar em cima de todas as qualidades daquele violão para fabricar o instrumento para ele. Também podemos desenvolver novas maneiras de construção. É necessário não apenas acompanhar a tecnologia, mas também deixar esse conhecimento para as gerações seguintes com novas ideias.


Antonio de Torres dizia que o segredo do som do violão é o tampo. É isso mesmo?


A peça mais importante é o tampo, mas para a sonoridade em diferentes níveis é necessário usar diferentes materiais nas laterais e no fundo, porque isso também é muito importante para a voz (timbre) do instrumento.


Quais são os tipos de madeiras mais usados na construção dos modelos Hauser?


Estamos usando diferentes madeiras como: abeto ou cedro para o tampo; jacarandá da Bahia, de Madagascar e indiano, pau-violeta, jacarandá Grenadil Amazonas e diferentes tipos de maple para as laterais e fundo. Ébano para a escala, Mogno da América do Sul, América Central e da África para o braço.


Muitos luthiers brasileiros usam madeiras alternativas para a confecção de seus violões. Vocês vêm construindo com alguma madeira não tradicional?


Temos experimentado o uso de cerejeira para as laterais e o fundo; cedro branco, pinhos engelmann e sitka para os tampos. 


Muitos violões industrializados são inspirados na estrutura harmônica dos Hauser. O que você acha disso?


Hoje essa estrutura harmônica é o novo padrão para os violões clássicos. Ela dá mais brilho se comparada a outros tipos de construção.


Quais são as características gerais de um violão Hauser?


Um violão Hauser é muito bem balanceado, brilhante, claro e com bastante sustentação. O resultado final depende de todo o material empregado, design e mão de obra. Estamos usando madeiras do estoque que começou a ser montado por Josef Hauser e Hermann Hauser I. Hermann Hauser II trabalhou da mesma forma que seu pai e seu avô, contribuindo para a ampliação de nossas reservas de material. Os tampos de pinho que usamos agora, por exemplo, estão em torno de 60 a 100 anos guardados em nosso estoque familiar. E Kathrin e eu compramos novas madeiras para, no futuro, o nosso estoque continuar com as mesmas condições.


A HERDEIRA DA TRADIÇÃO



Antes de se dedicar inteiramente ao violão, Kathrin Hauser investiu em uma carreira de negócios. Depois de alguns anos atuando nesta área, ela começou a trabalhar na oficina da família, Hermann Hauser, na Baixa Baviera, Reisbach.

Com o seu primeiro violão construído, foi convidada para uma exposição especial em Tóquio. A renomada revista japonesa Gendai Guitar dedicou a Kathrin Hauser um extenso artigo, por ocasião dessa exposição.

Kathrin atualmente trabalha com seu pai, Hermann Hauser III, no projeto de evolução dos instrumentos Hauser.



Como surgiu o interesse de se tornar uma luthier?


Kathrin Hauser: A inspiração para tornar-me uma luthier veio da nossa família, porque muitos violonistas frequentam nossa casa para tocar. Sempre estou ali com meu pai, ouvindo o que ele conversa com os músicos. Fiquei muito fascinada. Pensei que também deveria construir violões. É tão bonito ver a madeira e, depois de terminar um instrumento, querer ouvir o som. É sempre surpreendente. Antes de me tornar luthier, estudava administração de empresas. Meu pai sempre me disse que era importante, para ajudar a organizar a oficina.


Quando você começou a construir o seu primeiro instrumento?


Durante o tempo em que estudei luteria na oficina da família, meu pai me ensinou como as diferentes madeiras trabalham juntas para produzir um som especial. Eu estava fazendo meu primeiro violão seguindo exatamente este caminho em 2006. Um violão finalizado me dá sempre mais ideias para criar diferentes modelos, novos desenhos, mas nunca esqueço da qualidade e do timbre. Em 2007 completei meus estudos de luteria e desde então trabalho junto com meu pai, na oficina.


Eu soube que você foi convidada a expor no Japão e foi muito bem recebida. Como surgiu esse convite?


Um dia, um cliente do meu pai foi visitar a nossa oficina e, durante o encontro, começamos a falar sobre os meus violões. O cliente gostou de ver o meu violão número 1 e ficou fascinado com o som, a tocabilidade e seu acabamento artesanal. Depois de tocar o violão número 1, disse que o instrumento estava fabuloso e me convidou para uma exposição em Tóquio, a fim de me apresentar aos amantes de violão do Japão, porque eles tinham de ver e ouvir aquele violão maravilhoso. Para mim foi um grande prazer e uma honra receber este convite. Após a exposição, recebemos convites para fazer uma masterclass para a construção de violões em Seul, Coreia do Sul.


Qual será o seu próximo passo como luthier?


Nos próximos meses [em 2010], vou enviar um de meus violões para os Estados Unidos. Eles parecem gostar do meu trabalho. No final deste ano estamos planejando mais uma vez uma Exposição Hauser, em Tóquio. Vou continuar a trabalhar com meu pai.

Dinastia Hauser



Josef Hauser (1854-1939) Antes de se tornar luthier, Josef era professor de cítara e considerado um músico virtuoso no instrumento. Começou construindo cítaras, violões, bandolins, violinos e alaúdes. Em 1875 iniciou sua própria editora, onde publicava suas composições de música popular. Após casar-se, Hauser mudou-se para Munique, estabelecendo sua editora e oficina por lá.


Hermann Hauser I (1882-1952) Filho de Josef, consolidou-se como o principal luthier de violão do mundo em seu tempo. Especializou-se na construção de alaúdes e violões, mas também fabricava cítaras. Hermann Hauser I desenvolveu uma infinidade de modelos de violões diferentes, destacando-se o Vienna e o Munich, além do raro violão Quintbass. Até hoje seus instrumentos são desejados no mundo inteiro. Hauser I desenvolveu uma técnica de junção do corpo com o braço num processo utilizado por fábricas até hoje. Llobet e Segovia utilizavam violões construídos por ele.


Hermann Hauser II (1911-1988) Começou a trabalhar com seu pai em 1930. No primeiro momento, todos os instrumentos eram assinados Hermann Hauser I. Após mais de 20 anos construindo violões, Hauser II assumiu os negócios do pai em outubro de 1952. Desse momento até 1983, os instrumentos foram assinados por Hermann Hauser II. O primeiro instrumento assinado era de número 500, seu último é provavelmente o número 1.050. Ele continuou desenvolvendo os clássicos Hauser I e definiu formas específicas com a colaboração de violonistas virtuoses. Andres Segovia e Julian Bream foram seus principais colaboradores, além de muitos outros que também desfrutavam de sua amizade. 

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