A LUTERIA BRASILEIRA: SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA E OS DESAFIOS MERCADOLÓGICOS PÓS-PANDEMIA.
RESUMO: Este artigo, fragmento atualizado do meu trabalho de conclusão de curso em Gestão Empresarial na FATEC-SCS “Antonio Russo”, busca apresentar fatos históricos importantes para o desenvolvimento da luteria e da indústria de instrumentos musicais no Brasil, assim como dados econômicos e dos seus principais personagens, levando em consideração os impactos do período da pandemia. Uma reflexão baseada nos trabalhos de Mitsuru Yanaze e Grant McCracken auxiliam na compreensão de como os produtos da indústria criativa podem se tornar economicamente viáveis.
INTRODUÇÃO
Luteria é um termo que se refere à palavra luth, de origem francesa, que significa alaúde, um instrumento de cordas muito popular durante a Idade Média. Assim, luthier era o artesão que construía alaúdes. Com o passar dos anos – e a evolução dos instrumentos - houve o declínio pela procura do alaúde, e os luthiers passaram a construir outros instrumentos musicais, como as vihuelas, os violões, os violinos, e, mais recentemente, os instrumentos elétricos como guitarras, baixos e até mesmo violinos elétricos. O termo luteria, apesar da praticamente extinção do alaúde, resistiu e começou a designar – de forma genérica - a arte de produzir instrumentos musicais, em especial os instrumentos de corda feitos em madeira. Não raramente o termo também é utilizado, de forma imprecisa, para designar também reparadores de instrumentos musicais, o que estende o seu uso coloquial - que também utiliza "luthieria" como variante do termo formal "luteria" - para designar todo profissional que trabalha na fabricação ou reparação de instrumentos musicais de cordas.
A história da fabricação de instrumentos musicais em território brasileiro, caso sejam considerados os instrumentos de rituais indígenas, remete a tempos imemoriais, como pode ser constatado nos relatos sobre a Trombeta Jurupari.
Além disso, existem registros de instrumentos musicais utilizados na evangelização dos índios nos primeiros anos de colonização sendo produzidos com o intuito de replicar os instrumentos europeus, originando a viola branca e a rabeca, por exemplo. A tradição de produzir os referidos instrumentos continua em manifestações folclóricas como o fandango caiçara.
No entanto, quando se trata da atividade econômica, é forçoso dizer que a luteria brasileira iniciou no final do século XIX, em especial com os imigrantes italianos que desembarcavam no país, onde a “progressiva abolição da escravatura, antes mesmo de se consumar, com a lei Áurea, em 1888, criava a necessidade de braços para o trabalho, em especial na lavoura” (WERNECK, 2008).
Num primeiro momento, estes imigrantes ocuparam a região sul do país e, logo em seguida, começaram a povoar a região paulista, cuja economia vivia um momento de expansão devido a agricultura do interior que vivia um grande momento com a produção do café, bem como o processo de industrialização da capital que estava em ritmo acelerado, o que justifica o apelido que, futuramente, receberia de “locomotiva do país”.
Werneck informa que em 1900, mesmo ano de fundação da reconhecida fábrica de instrumentos musicais Giannini em São Paulo, o número de italianos residentes no Estado era calculado em 800 mil. Um dado apresentado pelo referido autor nos ajuda a dimensionar a contribuição da mão de obra imigrante no início do século XX: em 1901, 90% dos empregados nas fábricas da capital paulista eram italianos.
Sendo assim, a indústria brasileira de instrumentos musicais surgiu neste momento promissor. Tranquillo Giannini, nascido em 1876, chegou ao Brasil em 1890.
Não se pode afirmar se, ainda adolescente, já se havia iniciado no ramo da luteria. O que se conta é que era dotado de grande habilidade no trato com a madeira, sendo capaz de fabricar tanto móveis como peças mais complexas, carros alegóricos, por exemplo.
Um dia lhe apareceu um músico pedindo que consertasse o seu violão. ´Se eu fizer um violão vai ser melhor do que este´, gabou-se Tranquillo. ´Pois eu duvido!´, rebateu o outro. O desafio, há quem diga, é que teria precipitado o jovem imigrante em seu ofício de luthier. Pôs-se a fazer violões cada vez mais elogiados, até que a demanda crescente o levou a criar, em 1900, a fábrica de instrumentos de corda que tem seu sobrenome e que, mais de um século depois, segue em atividade. (WERNECK, 2008)

Curiosamente foi nesta fábrica fundada por Tranquillo que Romeu Di Giorgio, outro importante nome da indústria de instrumentos musicais do país, iniciou sua carreira de luthier. Anos depois de seu início na Giannini, Romeu deixa a empresa porque seu sonho era produzir “violões finos, para concertistas”, o que fugia dos objetivos da fábrica de Tranquillo, na época voltada para a produção de violões populares. Um dado interessante é que o primeiro instrumento de Di Giorgio conhecido - o qual pertenceu ao instrumentista Canhoto, uma referência do violão brasileiro - foi construído dentro da fábrica de Giannini.
A marca Di Giorgio ganhou notoriedade, em especial nos anos dourados da Bossa Nova, onde boa parte dos músicos utilizavam os seus instrumentos, em especial João Gilberto que endossava a qualidade dos violões de Romeu, como podemos constatar em suas apresentações, fotos e vídeos produzidos durante sua carreira, onde sempre estava acompanhado de um modelo Tárrega produzido pela fabricante paulista (Fig. 1).
Outro notório luthier de origem italiana que ajudou a iniciar a luteria no país foi Angelo Del Vecchio, que em 1900 recebeu como presente de núpcias uma viagem ao Brasil e resolveu ficar. Ele já exercia a função de luthier na Itália e manteve o seu ofício fundando a fábrica e loja de instrumentos musicais no Largo Riachuelo em São Paulo.

Del Vecchio era inovador. Inventou inúmeros modelos de violões que foram patenteados, dentre eles o violão e a viola dinâmica que continua conquistando músicos até hoje. Podemos destacar um álbum de Ricardo Vignini (Fig.2), um dos principais nomes da viola brasileira contemporânea, dedicado totalmente à viola dinâmica criada por Del Vecchio.
Durante boa parte do século XX, as principais escolas de luteria do país eram as três fábricas: Giannini, Di Giorgio e Del Vecchio. Delas surgiram grandes nomes da luteria brasileira, como os irmãos Saraiva, Antonio Tessarin, Suguyama, entre outros.
Na década de 1980 foi criado o primeiro curso oficial de luteria no Conservatório de Tatuí, com aulas ministradas por dois professores, o italiano Enzo Bertelli e seu filho, Luigi Bertelli, tendo como referência a Escola de Cremona.
Em 1983, segundo o professor Vlamir Devanei Ramos, professor da respeitada instituição de ensino brasileira, o Conservatório solicitou ao IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) do Estado de São Paulo, o desenvolvimento de um estudo das madeiras brasileiras em substituição às madeiras europeias tradicionais utilizadas na fabricação de violinos que vem sendo um importante referencial teórico de muitos pesquisadores e luthiers brasileiros que dissertam sobre o tema. No início do século XXI foi criado o curso de graduação em luteria pela Universidade Federal do Paraná, o que sugere um avanço na qualificação dos profissionais do segmento durante os últimos anos no país.
O NEGÓCIO DE FABRICAR INSTRUMENTOS MUSICAIS
A atividade de comercialização e fabricação de instrumentos musicais artesanais fazem parte da indústria da economia criativa, o conjunto de negócios baseados no capital intelectual e cultural e na criatividade que gera valor econômico. Segundo o Mapeamento da Indústria Criativa no Brasil, o setor gerou uma riqueza de R$ 393,3 bilhões para a economia brasileira em 2023. Nesta ocasião, a participação da indústria criativa foi de 3,59% no PIB brasileiro, quando a indústria criativa era composta por mais de 1,26 milhão de profissionais formais. No entanto, é importante destacarmos que o setor ainda enfrenta resistência para a formalização, possuindo muitos trabalhadores informais atuando no segmento, o que prejudica no levantamento do real tamanho da contribuição para a economia e o potencial de desenvolvimento dos negócios criativos, bem como os modelos utilizados pelos empreendedores.
Economia criativa é ainda um conceito em evolução, pois, apesar de ter íntima relação com a cultura e os bens culturais, se distingue da economia da cultura. Tem grande relação com aspectos econômicos, culturais e sociais, os quais interagem com a tecnologia e propriedade intelectual em uma mesma dimensão, podendo se expandir para áreas como o turismo e o esporte.
Howkins (2001) afirma que a economia criativa está alicerçada sobre a relação entre a criatividade, o simbólico e a economia. Assim, podemos considerar que se trata de um conjunto de atividades econômicas que dependem de um conteúdo simbólico - nele incluído a criatividade como fator mais expressivo para a produção de bens e serviços.

O LUTHIER BRASILEIRO DURANTE A PANDEMIA
Com o intuito de compreender melhor o perfil dos profissionais do setor da luteria e a falta de referencial bibliográfico, realizamos 32 entrevistas com luthiers que atuam em diversas regiões do país sobre formação, formalização da atividade, precificação de produtos e serviços, produtividade e desafios diante do período de pandemia.
O segmento, como reflexo da indústria criativa como um todo, sofre bastante resistência para a formalização, o que foi comprovado com um número bastante significativo de artesãos informais (34,4%). A nossa amostragem também indica que uma pequena parcela atua como colaborador de fábricas e lojas (3,1%), mas a maioria dos luthiers (59,4%) atuam como MEIs (microempreendedores individuais). Segundo eles, é uma forma de garantir benefícios como contribuir para a previdência, ter menores custos com impostos e contabilidade, facilidade na aquisição de insumos, ferramental e componentes com fornecedores, bem como a possibilidade de emitir nota fiscal, bastante exigida em serviços de manutenção terceirizados para lojas e escolas de música.
Um ponto que merece bastante atenção é a falta de formação regular específica para a grande maioria dos luthiers brasileiros. Apenas 12,5% dos entrevistados estudaram formalmente luteria. No entanto, para cerca de 46,9% deles um diploma ou certificado de um curso formal em luteria é considerado muito importante, sendo considerado irrelevante por apenas 15,6% dos entrevistados (Fig. 3), o que sugere a carência na oferta de cursos profissionalizantes no setor, algo que poderia melhorar a qualificação da mão de obra na fabricação de instrumentos musicais brasileiros e garantir maior competitividade e valor agregado ao produto nacional.
Quando comparamos a realidade do mercado brasileiro com o italiano, onde o estudo formal é obrigatório para quem deseja atuar profissionalmente no segmento da luteria, seja na construção ou no restauro de instrumentos musicais, fica evidente os motivos do abismo que separa os dois.
Com ticket médio de 25 mil euros e um volume de exportação de quase 7 mil violinos de alto padrão por ano, o país europeu é a grande referência no mundo. No Brasil temos um ticket médio de R$ 8 mil reais para os instrumentos produzidos pelos artesãos brasileiros e uma tímida participação no mercado internacional como um todo. O ticket médio cai ainda mais quando são levados em consideração os instrumentos de cordas dedilhadas, segmento em que a grande maioria dos luthiers autodidatas brasileiros atuam e que levam em extrema consideração o poder de compra do músico brasileiro. Destaque para os fabricantes de violas caipiras, com ticket médio de R$ 2.5 mil, e o de guitarras, onde a média de preço fica em torno de R$ 5 mil. Aliás, este é um dos destaques críticos apontados pela pesquisa: boa parte dos entrevistados que produzem instrumentos de cordas dedilhadas informam que, para precificarem, cobram “o valor do material mais mão de obra”, o que inviabiliza a saúde de qualquer negócio.
Os custos fixos como energia, água, telefone, manutenção de maquinário e ferramentas, impostos, entre outros, bem como os custos variáveis não são contabilizados, o que sugere a dificuldade em precificar de forma saudável os preços. Um dos entrevistados, ao ser questionado sobre a média de preço de seus instrumentos, respondeu que custam “800 reais, e está 200 mais baixo do que gostaria de ganhar pelo trabalho dispendido”. Isto reflete na fragilidade econômica da maior parte dos artesãos que atuam de maneira informal no segmento e que, de certo modo, acabam gerando muita confusão na mente do consumidor de instrumentos musicais “de luthier”, como são chamados por muitos músicos no Brasil, sejam eles de autor ou de oficina, e que trataremos adiante. A média de produção do luthier brasileiro é de dez instrumentos por ano.
No entanto, vale destacar que cerca de 28,1% dos entrevistados – que trabalham com preços acima do ticket médio, em torno de R$ 20 mil e, via de regra, são de instrumentos voltados ao segmento de música erudita, como os instrumentos de cordas friccionadas (violinos, violas e cellos) e violões com cordas de náilon - já tiveram experiência em oferecer seus produtos para outros países, o que indica uma mudança de comportamento do luthier brasileiro, que é focado em atender o mercado doméstico, muitas vezes com produtos a preços competitivos para disputar mercado com instrumentos de fábrica ou de oficina importados. Além disso, a desvalorização do Real diante das moedas estrangeiras garante competitividade ao instrumento musical brasileiro, especialmente os de cordas friccionadas, onde um violino de US$ 3 mil é considerado um instrumento profissional de entrada, por exemplo.
Outra característica interessante da luteria é que, para cerca de 19% dos artesãos ouvidos, a atividade é encarada como um hobby, a exemplo do que podemos encontrar no artesanato ou bricolagem, sendo que os hobbistas possuem uma íntima afinidade com atividades musicais e habilidades manuais.
No Brasil, por não ser uma atividade regulamentada, o termo é utilizado para designar tanto quem realiza manutenção quanto quem fabrica um instrumento musical. Apenas 6,2% dos luthiers atuavam exclusivamente na fabricação de instrumentos musicais durante o período marcado pela pandemia. Para 68,8% existia a necessidade de, além de fabricarem os seus instrumentos musicais, complementar o faturamento realizando serviços de manutenção e restauro dos instrumentos. Já os 25% restantes estavam trabalhando exclusivamente com manutenção de instrumentos musicais, especialmente instrumentos de cordas dedilhadas como violões, violas caipiras, cavaquinhos, guitarras e baixos elétricos.
Os anos de 2020 e 2021 foram marcados pela pandemia do vírus Covid-19, afetando negativamente muitos mercados. Apesar da indústria da economia criativa mundial não ter sido tão afetada, os luthiers brasileiros sentiram o momento frágil da economia doméstica, levando 59,4% dos entrevistados a afirmar que a pandemia afetou negativamente o seu negócio, forçando alguns a deixarem de produzir e a se dedicarem a outras atividades, como a manutenção e restauro de instrumentos musicais ou outra forma de complementar a renda. Muitos encontraram no auxílio emergencial uma maneira de atenuar os efeitos da crise.
Outro dado interessante foi o surgimento de “novos luthiers” nos últimos anos marcados pela crise econômica. Cerca de 15% dos entrevistados encontraram nos serviços de manutenção de instrumentos musicais uma alternativa para complementar a renda afetada. A maioria destes profissionais é formada por músicos e assistentes de palco, roadies, entre outras atividades do show business, setor da economia criativa que, por promoverem o aglomeramento de pessoas, tiveram suas ações paralisadas por completo em muitos períodos dos anos de 2020 e 2021 devido ao risco de contaminação da população.
AS GRANDES FABRICANTES DURANTE A PANDEMIA
Produtos e serviços da indústria criativa têm elasticidade-renda elevada, e mesmo durante a crise gerada pela pandemia, seu comércio mundial não foi afetado negativamente como outros setores (como o já citado show business).
Um caso específico que pode ajudar a ilustrar o fenômeno. O Washington Post em 2017 havia publicado uma matéria com depoimentos do músico Paul McCartney e um icônico lojista do setor, George Gruhn, onde afirmavam que estávamos testemunhando a “morte lenta da guitarra elétrica”.
Segundo matéria publicada no El País, após anunciar a aquisição do departamento de áudio e vídeo da Philips, o então executivo-chefe da Gibson, Henry Juszkiewicz, afirmou que aquele era “o passo para nos tornarmos a maior empresa de som do mundo”. Quatro anos mais tarde, a empresa de Nashville declararia falência e seria controlada pelo grupo de capital de risco KKR.
Após este episódio, muito se falou sobre “o fim de uma era”, onde muitos declaravam a “morte da guitarra elétrica” culpando o Hip Hop e outros estilos musicais eletrônicos como os principais responsáveis pelos insucessos de ícones como as marcas norte-americanas Gibson, Fender e Martin a registrarem sucessivas quedas anuais de faturamento.
A Gibson, centenária fábrica que iniciou suas atividades ainda no século XIX fabricando bandolins, se tornou uma das principais referências na história do Rock, sendo utilizada por lendas do estilo musical que ditou os caminhos da música pop e da moda mundial. Quando foi decretada falência, apesar do choque do público que acompanha o segmento musical, já era sabido que se tratava de uma marca muito valiosa para desaparecer e, apesar de carregar uma dívida acima de 500 milhões de dólares, a proprietária KKR resolveu apostar em um executivo que esteve à frente de uma outra importante marca centenária americana, a Levi´s, conseguindo associar os valores da sua tradição, mas, ao mesmo tempo se tornando moderna e desejável por todos, inclusive para as novas gerações. James Curleigh, canadense, foi um estudante brilhante com passagens por Harvard e Stanford e tem o perfil do consumidor da Gibson, crescendo em uma família musical e tocando em bandas de garagem a vida toda. Segundo ele, a escolha de aceitar o cargo para ressuscitar a marca foi algo emocional.
Curleigh seguiu pelo caminho inverso de seu antecessor. Em vez da expansão, decidiu focar a empresa naquilo que ela sabia fazer de melhor: violões e guitarras. Simplificou a gama de produtos, dividindo-os em apenas duas coleções: Original, inspiradas nos modelos clássicos; e Modern, onde se pode “brincar com outros materiais, outras superfícies e cores... ou até mesmo acrescentar mais cordas”, como Mat Koehler, chefe de desenvolvimento da empresa, destacou para o El País.
Segundo Curleigh, o processo artesanal e os controles exaustivos de qualidade foram retomados, o que gerou elogios imediatos ao retorno da Gibson à qualidade de suas origens. Pouco tempo depois, a pandemia surgiu e provocou uma inesperada paralisação na produção da Gibson, bem como das outras marcas. No entanto, mais inesperada ainda foi a recuperação nas vendas de violões e guitarras.
Em artigo do New York Times publicado em 2020, a guitarra não está apenas viva e bem, mas prosperando de uma forma que não acontecia há anos.
A Fender, uma das mais tradicionais fabricantes de instrumentos musicais norte-americana, através de seu executivo-chefe, Andy Mooney, afirmou que 2020 “será o maior volume de vendas por ano na história” da companhia, com crescimento de dois dígitos, expansão de vendas no comércio eletrônico e de vendas de equipamentos para iniciantes, o que se confirmou no ano seguinte. Já as fabricas da Gibson não só retomaram a atividade normal, como dobraram sua capacidade produtiva e ampliaram a mão de obra para assumir uma demanda muito superior à esperada. Além disso, ainda adquiriu a marca de amplificadores Mesa Boogie com o intuito de oferecer uma experiência completa ao músico.
Segundo análise da Fender em 2021, nos últimos dois anos, período em que o mundo enfrentou a pandemia do covid-19, cerca de 16 milhões de pessoas aproveitaram o período de distanciamento social para aprender a tocar guitarra. Dessas, 72% são jovens entre 13 e 34 anos. O fato mais curioso que a pesquisa “New Guitar Player Landscape Analysis” (Análise de Cenário de novos guitarristas) apresentou foi que 58% dos novos guitarristas foram inspirados por conteúdos produzidos no TikTok.
A Fender vendeu mais guitarras em 2020 que em qualquer outro ano em sua história, mas, segundo a publicação do New York Times, fabricantes como Gibson, Taylor, Martin e outras também reportaram um “boom” de vendas durante a pandemia, com novos consumidores que adotaram o que estão chamando “terapia das seis cordas”.
O NEGÓCIO DE VENDER INSTRUMENTOS MUSICAIS
Assim como o segmento de guitarras, outros instrumentos também tiveram maior procura e as vendas utilizando os canais digitais se intensificaram. O colaborador, Mark San, da Montreal Music, uma rede de lojas de instrumentos musicais no Brasil, afirma que foi espantoso o crescimento da empresa em plena pandemia. Segundo ele, as vendas tiveram grande queda nas primeiras semanas. No entanto, houve um segundo movimento de grande procura por instrumentos musicais e acessórios através dos canais de comércio eletrônico e, após a autorização da abertura de lojas em horários reduzidos, a Montreal abriu uma nova loja na cidade de Guarulhos, ampliando a praça de atuação, seguindo todas as recomendações de autoridades e protocolos de segurança da OMS. O atendimento consultivo da empresa, seja nas vendas presenciais ou nas vendas online utilizando como ferramentas o WhatsApp e as redes sociais da loja, foi um dos grandes diferenciais da rede de lojas que possuía naquele período cinco lojas, incluindo unidades em endereços tradicionais do comércio do setor como a região da Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, e a Rua Teodoro Sampaio, no bairro de Pinheiros, a principal referência no comércio de instrumentos musicais premium. A equipe, formada por músicos com larga experiência também é um dos diferenciais. Mark San, por exemplo, era sideman (músico acompanhante) de importantes nomes da música popular e sertaneja, tendo como um dos últimos trabalhos (até o período da pandemia começar) a dupla sertaneja Gian & Giovani. Segundo ele, o clima organizacional “é incrível, pois a Montreal tem a boa prática de reconhecer o mérito dos seus colaboradores”, enaltecendo que “a empresa transformou a vida de muitos de nós, dando a oportunidade de melhorar a qualidade de vida e dar a oportunidade de crescimento constante”. Mark que iniciou com a função de demonstrar produtos na loja da Vila Formosa era naquele momento o responsável pela gestão da loja na rua Teodoro Sampaio. Ao mesmo tempo que tivemos o exemplo de plena expansão no período de pandemia, encontrávamos casos de lojas tradicionais do setor fechando suas portas e decretando falência, como a Playtech.
Mas o que explica resultados tão distintos em empresas que atuam no mesmo setor?
Paulo Nassar já apresentava em sala de aula a importância de se conhecer a razão de existir de uma empresa. Para ele, uma organização não se resume apenas em produzir determinados bens de consumos ou ser um local onde pessoas desempenham um determinado tipo de função/serviço.
Uma organização é um potencial agente transformador social, pois “de nada valem as estratégias modernas e sofisticadas de comunicação e defesa da imagem organizacional … se elas não chegarem ao pessoal das oficinas, dos escritórios, da ‘classe média’, do ‘chão da fábrica’ e da ‘periferia’ da empresa – ou se não são compreendidas por ele” (2006). Entrar em um ambiente mercadológico altamente competitivo não é uma tarefa fácil. É fundamental reconhecer a natureza empresarial, ter uma visão mercadológica bem definida, uma missão a desempenhar dentro do segmento que deseja atuar e valores que sejam capazes de serem reconhecidos pelo público.
Mitsuru Yanaze (2006) alerta que “o sucesso na conquista do mercado não depende somente da atuação da empresa” e de suas vantagens competitivas, como seu poder de barganha com fornecedores, mix de produtos e capital, por exemplo; mas “de sua interação com as instituições e organizações, as quais, além de comporem seu ambiente mercadológico externo, podem afetá-la positiva ou negativamente”.
Deste modo, é fundamental criar mecanismos para se aproximar dos diversos públicos que se relacionam com a empresa e, de certo modo, propor um maior envolvimento entre eles, se preocupando efetivamente com seus anseios e expectativas e verificar se estão alinhados ao propósito da existência do negócio.
O PROPÓSITO DA EXISTÊNCIA DO NEGÓCIO
COMO ALICERCE DO POSICIONAMENTO DO PRODUTO
Como apresentado anteriormente, a atividade econômica de fabricar instrumentos musicais, peças e acessórios faz parte do setor da indústria da economia criativa, que vem crescendo de forma expressiva em representatividade em termos percentuais dentro da atividade industrial de transformação no Brasil. No entanto, segundo informações da Associação Nacional da Indústria da Música (Anafima), cerca de 90% dos itens comercializados no setor de instrumentos musicais em território brasileiro são importados, sendo que boa parte dos produtos são de origem asiática.
Os números quantitativos podem oferecer uma leitura imprecisa da atividade e do mercado, e podem mascarar um promissor segmento que está em ascensão: o de instrumentos de oficina, bem como o de instrumentos de autores brasileiros. Para tanto, é importante categorizarmos os produtos de acordo com o processo de produção, pois esta é uma das formas mais conhecidas de reconhecimento de valor dos instrumentos musicais no mundo e, de certo modo, a escolha de um dos referidos modelos de processo de produção será determinante para o posicionamento mercadológico, pois direcionará inevitavelmente a natureza e o propósito da existência do negócio. A saber:
Instrumentos de fábrica: Sejam eles produzidos manualmente por funcionários de uma fábrica ou por máquinas, geralmente, são os instrumentos de custo mais acessível no mercado. O que importa nesta categoria é o produto ser produzido no menor tempo possível, com a garantia de ter especificações aceitáveis pelo grande público e com perdas materiais em níveis aceitáveis. Tudo isso com o intuito de manter a grande estrutura e obtenção de lucro da atividade econômica da empresa. Em suma, no cenário ideal temos instrumentos honestos produzidos em série – ou em larga escala. Eles podem ter categorias diferentes de preço para atender perfis de consumidores diferentes. Ou seja, poderemos encontrar desde os instrumentos mais simples e funcionais, até instrumentos com acabamentos primorosos e detalhes customizados com o intuito de atrair um público interessado em instrumentos de alto padrão.
Além disso, como característica de instrumentos de fábrica de boa procedência, podemos destacar a capacidade de manter um padrão de qualidade alinhado ao perfil de consumidor que se destinam.
Instrumentos de oficina/workshop: Podem ter produção manual coordenada por um mestre luthier (no segmento de instrumentos de corpo sólido este profissional é chamado de master builder) e produzida por uma equipe de luthiers assistentes; e podem ter produção automatizada através do uso de CNCs.
São de custo intermediário dentro do segmento e é o tipo de instrumento musical que mais gera imprecisões no Brasil quanto a sua natureza. Muitas vezes chamados de “instrumentos de luthier”, “customshop” ou “handmade” no país, no entanto são categorizados mundialmente como “instrumentos de oficina” ou “de ateliê”. Os instrumentos “Custom Shop” também fazem parte da modalidade, caracterizando-se por uma oficina que atende no sistema “on demand”, incluindo em seu portfólio a possibilidade de personalização de algumas características dos seus produtos base, tornando-se assim um meio termo entre os instrumentos produzidos em série e a exclusividade dos instrumentos artesanais de autor. Assim como os instrumentos de fábrica, são produzidos por uma equipe com o aval de um responsável pela produção (ou seja, que atesta a qualidade do instrumento produzido).
Se diferem das fábricas, pois possuem uma preocupação maior com a qualidade do produto, o que inevitavelmente influenciará na velocidade da produção, mais lenta, pois haverá inúmeros controles de qualidade em cada etapa do processo.
Se por um lado os workshops (ou ateliês) possuem uma produção menor, por outro possuem menor desperdício de material, bem como são menores as chances de apresentarem produtos com defeito.
Instrumentos de autor: São obrigatoriamente produzidos manualmente por um luthier do começo ao fim. Como os instrumentos são produzidos um a um, a produção é lenta. Via de regra, a matéria prima é bem selecionada e atendem no mais alto grau critérios de resistência mecânica, estética e sonoridade. Dependendo de quem assina a peça, o instrumento pode valer uma grande fortuna, como os casos de instrumentos leiloados com preços acima de US$ 3 milhões, violinos assinados por Antonio Stradivari e Giuseppe Guarneri, por exemplo.
Evidentemente o valor do instrumento dependerá muito da capacidade técnica do artesão e, é claro, de sua reputação.
A CRIAÇÃO DE PORTFÓLIO ALINHADA AO PROCESSO PRODUTIVO
Quando se define um posicionamento de acordo com o processo produtivo, algumas questões começam, de certo modo a serem respondidas, especialmente no que se refere ao modelo de negócio da empresa. Entretanto, outras começam a surgir, em especial, no que se refere ao portfólio.
A análise de portfólio de produtos, segundo Yanaze, além de fundamental, é o primeiro passo para minimização de riscos e garantia de um planejamento estratégico orientado ao mercado. Afinal, não adianta oferecermos um produto de autor para quem não reconhece o trabalho artístico em um instrumento musical. Para um público que não consegue distinguir um bom instrumento musical de um objeto em forma de violão, por exemplo, oferecer um instrumento artesanal por 25 mil reais pode ser interpretado como um desaforo, pois o preço de um bem de consumo não é definido apenas pelos insumos e pelo custo de sua mão de obra, mas também pelo reconhecimento de valor por parte do consumidor.
O produto, de fato, mesmo sendo uma parte de todo o processo mercadológico, é o ator principal da organização. É através dele e de sua existência que uma empresa atua em determinado mercado, que origina a perspectiva do consumo e, consequentemente, de seu sucesso depende a longevidade de uma empresa. Em vendas é bastante comum ouvir a expressão “é como vender gelo para esquimó” para ilustrar metas impossíveis de serem alcançadas. E é justamente por isso que estratégias ou decisões sobre produtos exigem extrema atenção e suas etapas fundamentais devem ser sempre revisadas, caso contrário, qualquer decisão relativa ao produto pode gerar implicações em outras instâncias do processo de gestão e na cadeia produtiva da empresa.
1. PRIMEIRA ETAPA
Podemos destacar, como a primeira etapa fundamental, uma análise dos processos de produção. Como exemplo, poderemos imaginar que a referida análise revelasse que a aplicação do logotipo da marca é o ponto fraco do produto, o que poderia sugerir que a empresa devesse considerar modificações neste aspecto.
No entanto, a modificação da aplicação do logotipo “em decalque” por uma “aplicação em serigrafia”, por exemplo, implicaria mudanças no processo de compra da matéria prima, busca de novos fornecedores, formas de negociação, no estudo da melhor forma de aplicação do novo método, no treinamento da mão de obra para aplicar corretamente o logotipo no headstock, ou até mesmo na aquisição de um novo maquinário e equipamentos para confeccionar as telas de silk. Deste modo, a escolha do processo de produção implantado, além de estar alinhado com o propósito da marca, deve levar em consideração que, cada pequena alteração do produto, assim que ele foi definido, irão exigir mudanças estruturais que podem, dependendo da complexidade e volume de produção, paralisar uma fábrica ou inviabilizar a continuidade de um negócio.
2. SEGUNDA ETAPA
A segunda etapa está relacionada em caracterizar os produtos, a exemplo do que a Gibson fez, simplificando suas linhas e dividindo em duas principais categorias: Original e Modern. Este estudo geralmente apresenta as características inatas do produto, o que possibilita considerar formas de exposição e de distribuição para que ele se desenvolva no público-alvo. Por exemplo, as guitarras Original, por possuírem características das tradicionais, icônicas e consagradas guitarras da marca, é fundamental considerar a sua distribuição e presença nos pontos de venda, pois a forma de se relacionar com o público também será, geralmente, tradicional. Sentir o instrumento nas mãos é importante para este público com perfil mais conservador.
No entanto, as guitarras da linha Modern, onde o cliente pode inserir quantidades de cordas a mais e solicitar outro tipo de configuração de captadores, por exemplo, acaba se tornando um produto com características on demand, mais próximos de um instrumento de oficina “CustomShop”, exigindo um desprendimento do músico em adquirir um produto de estoque, a pronta entrega, para ser recompensado com a entrega de um instrumento único, exclusivo. Yanaze propõe uma adaptação da lista de checagem da evolução e o desenvolvimento do marketing no plano tático das empresas para analisar os dados relativos aos produtos:
1. Histórico (caso o produto já exista no mercado), motivos e justificativas de criação (no caso de produtos inexistentes);
2. Ciclo de vida e estratégia atual;
3. Características e diferenciais;
4. Benefícios (ou hierarquia de valor) para os consumidores;
5. Marca da empresa, linha e produtos;
6. Design dos produtos;
7. Embalagens e rótulos;
8. Qualidade intrínseca e comparada;
9. Serviços e garantias ao consumidor;
10. Formas de uso e instruções de cuidado;
11. Levantamento de necessidades regionais relativas ao uso;
12. Possibilidades de desenvolvimento dos produtos;
13. Dados relevantes de pesquisas anteriores, relativas aos produtos em questão; e
14. Checklist de produção e logística, envolvendo os seguintes aspectos: suprimentos, instalações e espaço, equipamentos, pessoal técnico e quadro-resumo de investimentos.
3. TERCEIRA E QUARTA ETAPAS
Na terceira etapa de Yanaze são utilizados os modelos GE e BCG em uma análise comparativa para avaliar a contribuição do produto com o faturamento da empresa; e, por fim, na quarta etapa será realizada uma revisão da análise SWOT, com o intuito de auxiliar na definição das estratégias e ações relacionadas aos produtos no curto, médio e longo prazos.
O PÊNDULO DO CONSUMO: RACIONAL X EMOCIONAL
Inicialmente, é fundamental levarmos em consideração fenômenos mercadológicos que identificam um padrão de consumo emocional no setor de instrumentos musicais, o que fortalece a máxima de que um instrumento não é apenas um produto funcional.
No caso dos instrumentos de autor, são peças com valor artístico, o que já os torna únicos. No entanto, existem valores intangíveis que podem alterar vertiginosamente o preço de mercado, mesmo que o instrumento musical seja de fábrica. Como exemplo podemos destacar modelos da Gibson que chegam facilmente a 5 dígitos de dólares e os instrumentos extremamente valorizados mercadologicamente da Fender. (DE LAET. 2020)
Um fenômeno que explica o premium price - ou seja, a relação entre o preço cobrado pelo produto e a percepção de valor por parte do consumidor - elevado de marcas como Gibson e Fender, entre outras marcas de propriedade de fabricantes de larga escala, é a estratégia de se utilizar o endosso de celebridade como um atalho para imbuir o bem de consumo com valores intangíveis.
Grant McCracken ensina que os bens de consumo possuem uma importância que vai além do seu uso e do seu valor comercial e que esta importância está mais relacionada à sua habilidade de comunicar significados culturais (2005). E é por esta razão que o hábito de consumo deve ser analisado com maior atenção, levando em consideração o grau de envolvimento, ou seja, a relevância percebida de um determinado objeto baseada nas necessidades, valores e interesses inerentes à pessoa (ZAICHKOWSKY, 1985). No hábito de consumo podemos destacar três tipos de envolvimento: com a propaganda, com o produto e com a decisão de compra.
O envolvimento com a propaganda é basicamente o nível de atenção despendida ao anúncio, independente qual seja o veículo. Com o advento das redes sociais, os níveis de interação com as campanhas e anúncios publicitários aumentaram de forma expressiva, pois, além de ser impactado pela mensagem, o usuário participa ativamente compartilhando, comentando e, por que não, ressignificando o conteúdo.
O envolvimento com o produto pode ser compreendido como o nível do interesse de um consumidor por um determinado produto, mesmo que não o tenha adquirido. No segmento de instrumentos musicais podemos destacar consumidores que adquirem modelos clássicos de guitarras produzidos por fabricantes de baixo custo ou de custo intermediário com o desejo de adquirir o modelo original desenvolvido pela marca consagrada, como a Gibson ou a Fender, por exemplo.
Ao final, o envolvimento com a compra se refere às diferenças na compra de um mesmo produto em diferentes contextos. A autora ainda estabelece três fatores que ela denomina antecedentes de envolvimento, são eles: pessoais, do objeto (ou do estímulo), e situacionais. Os pessoais estão relacionados a um conjunto de experiências que determinam se a pessoa está ou não envolvida com determinado produto. Os fatores de estímulo estão ligados ao tipo de mídia, ao conteúdo e aos atributos atribuídos ao produto anunciado. Já os fatores situacionais referem-se ao consumidor que, por exemplo, deseja comprar um instrumento musical e presta atenção nos anúncios de instrumentos musicais, participa de fóruns na internet sobre o assunto, testa produtos e apresenta alto grau de envolvimento. Deste modo, a importância de um produto na vida do consumidor irá depender dos valores pessoais e necessidades dele em um determinado momento de sua vida. Em suma, esta importância está relacionada à cultura e ao indivíduo.
Vale lembrar que o significado cultural dos bens de consumo está em constante mudança, pois a propaganda, o mundo da moda e os rituais de consumo, por exemplo, são instrumentos da trajetória do significado. Isso explica o motivo para máscaras N95 produzidas para o setor da construção civil terem se esgotado rapidamente durante as primeiras semanas da pandemia do covid-19 em março e abril de 2020. Após uma campanha estimulando a fabricação de máscaras de proteção caseiras através dos diversos canais de comunicação com o receio de as máscaras cirúrgicas e hospitalares também se esgotarem, criou-se rapidamente um item do mundo da moda: máscaras com estampas e acabamentos diferenciados para compor o visual, seja ele casual ou formal.
McCracken apresenta três universos de significados (o mundo culturalmente constituído, o bem de consumo e o consumidor) e dois momentos que ocorre a transferência de significados (do mundo culturalmente constituído para o bem de consumo; e do bem de consumo para o consumidor). Isto porque a cultura, segundo McCracken possui duas naturezas distintas, sendo como uma lente onde todos os fenômenos são vistos; e como um diagrama da atividade humana, coordenando a ação social e a atividade produtiva, especificando os acontecimentos e objetos transmitidos para elas. Em suma, “como uma lente, a cultura determina como o mundo deve ser visto. Como um diagrama, determina como o mundo será modelado pelo ser humano”. A cultura constitui o mundo dando a ele significado.
Este significado pode ser caracterizado em dois conceitos: categorias culturais e princípios culturais. Podemos entender categorias culturais como coordenadas fundamentais do significado, segmentando a sociedade em distinções de classe, status, gênero, idade e ocupação, por exemplo. Além disso, segmenta nossa realidade na relação tempo e espaço. Por exemplo, quando se diz que lugar de criança é na escola, estamos levando em consideração algumas categorias culturais: idade (infância), ocupação (estudante), tempo (período de estudos, que difere do tempo de lazer) e espaço (escola). McCracken afirma que “juntos eles criam um sistema de distinções que organizam o universo de fenômenos” (2005). Estes alicerces do mundo culturalmente constituído, no entanto, são invisíveis para todos aqueles que vivem nele. De qualquer modo, são constantemente fundamentadas pela prática humana de querer se diferenciar, de se destacarem, em suma, de criarem estas ferramentas para desenharem o mundo que imaginam.
Sendo assim, “é deste mundo assim constituído que o significado destinado aos bens de consumo é desenhado”, e, por esse motivo, os bens de consumo podem ser considerados uma instância da cultura material. Isso fica evidente quando se observa que pessoas categorizadas através de gênero, idade, classe social e até mesmo área profissional podem ser representadas através de um conjunto de bens de consumo. Um jaleco branco, por exemplo, pode identificar facilmente um médico. Curiosamente a vestimenta que deveria servir de proteção para os médicos e pacientes virou sinal de identificação e de status, como já descreveu a revista Super Interessante (2009).
Já os princípios culturais são os valores e as ideias que estão ligados intimamente a essas categorias, fundamentados pela cultura material em geral e pelos bens de consumo em particular. Isso significa que não há como um bem de consumo significar algo e deixar de significar outra coisa, ou seja, quando determinado produto está associado a determinadas categorias culturais inevitavelmente está imbuído dos princípios culturais intimamente associados a estas categorias.
Como exemplo podemos destacar um relógio masculino automático de alto padrão que, inevitavelmente, será um produto com características menos delicadas quando comparado a um relógio feminino. Associaremos este produto a valores como “robustez” ou “força”, intimamente conectados ao universo masculino, além de ser “sofisticado”, por se tratar de um produto de alto padrão dedicado a um público de classe alta. Caso o exemplo apresentasse um relógio feminino popular, ou até mesmo um smartwatch, os valores associados a eles seriam diferentes do primeiro, pois estariam relacionados a categorias culturais diferentes. É esta estrutura de significado que forma o mundo culturalmente constituído e que move o consumo. Ou seja, “bens de consumo são ao mesmo tempo as criações e os criadores do mundo culturalmente constituído” (MCCRACKEN, 2005).
A TRANSFERÊNCIA DE SIGNIFICADO
Robert Jordain afirma que “ouvimos música pela experiência do seu significado, pelo que ela nos diz” (1998). Isso quer dizer que o hábito de ouvir música não exige do ouvinte uma formação musical, mas o senso de escuta e disposição para pensar nas propostas apresentadas harmonicamente (ambiente) e melodicamente (narrativa da música). O ouvinte não precisa saber definir os elementos de linguagem e estruturação musical, não precisa saber o que se refere a uma sentença suspensiva ou resolutiva. No entanto, o ouvinte leigo consegue distinguir gêneros musicais e é capaz de compreender o seu simbolismo social.
Quando observamos um grupo de pessoas vestindo roupas pretas, cabelos compridos movendo suas cabeças ao som de guitarras distorcidas sabemos que se trata de um cenário roqueiro. No entanto, poucos sabem que temos muitos elementos do lundu (gênero musical afro que foi criado a partir dos batuques dos escravizados bantos e considerado o primeiro ritmo afro-brasileiro, servindo de base para o choro e o samba através de derivações de suas células rítmicas) em músicas de bandas de heavy metal brasileiras, por exemplo. Para o ouvinte leigo, as intenções das células rítmicas de origem afro-brasileiras podem passar despercebidas, mas elas continuam ali. As razões de estarem ali podem ser inúmeras, mas, se o ouvinte ignorar aquele elemento, ele não existirá em sua experiência. Isso fica evidente quando somos confrontados com algumas ações interessantes realizadas por orquestras brasileiras, como a Sinfônica Brasileira, a OSESP e a Jazz Sinfônica, para desmistificar a imagem da música erudita.
Muitos ouvintes acreditam que a música erudita é interessante, mas que não estão preparados para ouvir, por ser muito complexa. O nome Wolfgang Amadeus Mozart gera admiração, respeito e, para ouvintes leigos que não possuem costume de ouvir música erudita, distanciamento. Acontece que poucos se atentam ao fato que Mozart é um compositor do período clássico, momento da música marcado pela simplificação estrutural para a democratização da cultura devido à influência dos valores iluministas. Mozart foi um dos principais compositores deste momento cultural, marcado pela construção de salas de concerto e de teatros, onde a música não era mais privilégio do clero e da nobreza. Mozart iniciou o movimento da ópera germânica, na qual utilizava o idioma local nas peças para que o ouvinte pudesse compreender o diálogo dos personagens, rompendo uma tradição de adoção do idioma italiano, distante do entendimento do povo germânico. Curiosamente, quando se é executado o primeiro movimento de Eine Kleine Nachtmusik com quarteto de cordas e bateria de escola de samba, por exemplo, a combinação inusitada reveste a música com o mesmo conceito que a originou: democratizar a cultura! Isso ilustra a necessidade de comunicar de uma forma mais efetiva e, muitas vezes, doutrinar o ouvinte a prestar atenção naquilo que a música (ou a mensagem) quer dizer.
No universo de nosso mundo culturalmente constituído e do bem de consumo acontece algo similar. Para que o bem de consumo seja imbuído do significado que se deseja, são utilizados alguns mecanismos comunicacionais para que isso ocorra.
O PRIMEIRO MECANISMO DE TRANSFERÊNCIA DE SIGNIFICADO
O primeiro deles é o da propaganda que é um dos mais eficientes, pois realiza a transferência de significado trazendo o bem de consumo e uma representação do mundo culturalmente constituído. Juntos, eles são inseridos nas ações de publicidade definidas por uma agência ou pelo próprio anunciante com o intuito de unir esses dois elementos e impactar o leitor/espectador conquistando a sua empatia, vislumbrando-o com signos que representam valores similares aos dele ou similares à projeção da imagem que o leitor/espectador tem dele mesmo. Quando esta equivalência simbólica é estabelecida satisfatoriamente, o espectador atribui certas propriedades que ele conhece do mundo culturalmente constituído ao bem de consumo. Essas propriedades conhecidas começam, então, a residir nas propriedades desconhecidas do bem de consumo, completando a transferência de significado do mundo culturalmente constituído ao bem de consumo.
O SEGUNDO MECANISMO DE TRANSFERÊNCIA DE SIGNIFICADO
O segundo se refere ao sistema da moda. Dentro deste sistema, existem três caminhos possíveis para a transferência de significado.
1. PRIMEIRO CAMINHO:
O primeiro deles está relacionado à capacidade de criar tendências e, por que não, significados. Seguindo os caminhos da propaganda e utilizando espaços em magazines, revistas, jornais, blogs e redes sociais, por exemplo, sua capacidade de criar tendências de novos estilos de se vestir influenciam as categorias e os princípios culturais e, é claro, nos mesmos moldes da propaganda, transferem o significado ao bem de consumo. É um caminho complexo por ser cíclico, transformando o mundo culturalmente constituído, transfere significado através dos meios de comunicação aos bens de consumo e os próprios bens de consumo alimentam o mundo culturalmente constituído.
2. SEGUNDO CAMINHO:
O segundo caminho está relacionado à capacidade de inventar significados culturais, mas de maneira radical. Ele está relacionado à cultura urbana, nasce na sociedade industrial ocidental. Está intimamente ligado aos movimentos culturais minoritários, como os hippies, os punks, o público LGBTQ+, vivendo num mundo que não é apenas culturalmente constituído, mas também historicamente constituído. No Brasil temos alguns bons exemplos, como a marca Daspu criada por prostitutas cariocas. O sucesso começou quando a paulistana Daslu acusou a Daspu de “denegrir” o seu nome. O caso ganhou a imprensa e muitas celebridades resolveram apoiar a Daspu usando suas camisetas. A marca foi gerada pela ONG Davida que promove ações sociais junto às prostitutas.
3. TERCEIRO CAMINHO:
O terceiro caminho está em explorar os formadores de opinião, que “ajudam a construir e refinar o significado cultural existente, incentivando a reforma das categorias e dos princípios culturais” (McCRACKEN, 2005). São indivíduos tidos em alta estima por parte de um público em virtude do nascimento (nos casos da realeza e herdeiros de grandes empreendimentos, por exemplo), beleza, celebridade, ou feitos e realizações, que são fontes de significado para aqueles com menor destaque. Ou seja, tratamos aqui de uma elite social, um grupo de pessoas privilegiado que serve de exemplo e inspiração para as outras pessoas e que, com o advento das redes sociais, ganhou ainda mais relevância nas estratégias de difusão de bens de consumo no século XXI. Este grupo consegue ditar estilos de vida, implantar novos valores por serem imitados pelas outras pessoas. É neste contexto que o endosso de celebridade (ou de influenciadores) se encaixa.
CONCLUSÕES
Nesta investigação sobre a história da luteria no Brasil, o crescimento mercadológico do setor da economia criativa e os desafios de formalização dos profissionais do segmento, observamos que há um grande potencial de contribuição para geração de riquezas para o país. Quanto aos fatores do desempenho e sua inter-relação com as denominações de instrumentos de acordo com o processo de produção, é possível constatar que, a partir da escolha do modelo de negócio e da filosofia de quem é o responsável pela atividade econômica de construir instrumentos musicais, é fundamental conhecer – e reconhecer – seus valores e crenças.
Além disso, é importante saber quem é o seu público consumidor e todo o emaranhado cultural que o cerca, entendendo suas motivações, necessidades, desejos e comportamentos ao interagir com determinados símbolos, suas interpretações e percepções da significância dentro do processo de comunicação. A utilização de mecanismos de transferência de significado é um importante atalho para a compreensão da natureza do produto cultural, e, por essa razão, é fundamental dominar a semiótica do produto, neste caso, do instrumento musical dentro deste mundo culturalmente constituído.
Em suma, saber se comunicar utilizando a mesma linguagem que o seu público-alvo, utilizando signos que ele reconheça e que despertem o seu interesse, será determinante para o sucesso do negócio, seja para uma grande fabricante, uma oficina ou um artesão.
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